‘Sem resolver o problema da liquidez, empresas vão começar a quebrar’, diz presidente da GM

Acordos de redução de jornada e salários não serão suficientes para manter empregos; novas medidas devem ser tomadas em até duas semanas

Entrevista com Carlos Zarlenga, presidente da General Motors na América do Sul.

Em meia hora de conversa, o presidente da General Motors América do Sul, Carlos Zarlenga, citou 14 vezes a palavra liquidez. É esse o maior problema que ele e outros executivos temem no momento. Se o problema da falta de caixa das empresas de toda a cadeira produtiva do setor automotivo não for resolvido em no máximo duas semanas, “empresas vão começar a quebrar”, principalmente entre as fornecedoras de autopeças. A única saída, diz ele, é BNDES liberar linhas de curto prazo ou o governo assumir a garantia para empréstimos dos bancos privados.

O executivo argentino também afirma que, após a crise provocada pelo coronavírus passar, o cenário será de uma indústria endividada, que terá de rever investimentos, inclusive em projetos até então prioritários como carros elétricos e autônomos. O marco regulatório que define metas de emissões, segurança e consumo terão de ser revistos. “Milhões em receita vão desaparecer; isso vai ter impacto em tudo que se planejou para o futuro”, diz. A seguir, trechos da entrevista.

A paralisação das fábricas afeta muitos negócios?
A parada na produção não é o maior problema neste momento. O mais preocupante é a situação de caixa da indústria. Nas últimas duas, três semanas, as vendas de carros foram praticamente zero e é muito difícil antecipar quando poderá haver uma retomada de demanda. Temos uma cadeia de fornecedores muito longa e, quando não há receita, a crise se aprofunda rapidamente. A indústria normalmente tem caixa para duas a seis semanas, dependendo do porte. O problema da liquidez pode quebrar a cadeia de pagamentos. Quando o cliente me paga, eu pago meu fornecedor, que paga seus fornecedores e os salários dos funcionários e assim por diante. Se a cadeia de pagamentos para, há um grande risco de solvência num período muito curto. Resolver a questão da liquidez é chave. Estamos falando de dias, não estamos falando de meses, pois até lá empresas vão começar a quebrar. Trata-se de uma cadeia produtiva que emprega 1,3 milhão de pessoas no País.

Há risco de solvência para grandes empresas também?
Não tem empresa que resista a um período longo sem vendas. Pode ser grande, média ou pequena, podem ser fabricantes, fornecedores ou concessionários. Algumas podem ter um pouco mais de caixa, outras menos, mas impacta a todas.

Como está a situação da GM?
Não vale a pena falar especificamente de cada empresa. A queda de vendas é para todas, no mundo todo. É um problema setorial. Vamos supor que a GM esteja bem e consiga fazer seus pagamentos, mas se meu fornecedor não está bem, se não conseguiu fazer seus pagamentos e o problema dele se transformar em solvência, ele vai deixar de fazer a parte que vou precisar no futuro para minha produção. O colapso pode ser sistêmico. Por isso é importante a liquidez para o sistema inteiro.

Como se resolve isso?
A liquidez que o setor automotivo precisa pode vir de três situações: do financiamento de fora do País, das matrizes; dos bancos privados emprestando para as empresas; ou pode vir de um sistema de financiamento do governo. Ocorre que todas as empresas globais estão tendo os mesmos problemas, e acho que não vai ter ajuda externa. No caso do financiamento privado, os bancos não vão emprestar se não tiverem garantias. Por isso a ação do governo é importante, quer seja como o ministro Paulo Guedes tem falado, de ajudar os bancos privados a emprestarem o dinheiro já disponibilizado pelo Banco Central através de garantias, ou o BNDES prover rapidamente linhas de capital de giro de curto prazo. Acho que o BNDES é o que está mais preparado para isso. Alemanha, França, Estados Unidos e Coreia estão fazendo isto. Provendo grande liquidez nos setores industriais de bens duráveis. Eles estão colocando essa liquidez e ela está chegando ao sistema. Aqui ainda não está chegando e a urgência é altíssima, do contrário vamos ter problemas muito sérios.

O que está sendo feito no Brasil não alivia essa situação?
Temos de entender que os bancos também precisam ter um perfil de risco que funcione para eles, precisam de garantias e, nesse momento, só o governo pode dar. Teve muito movimento da equipe econômica endereçando medidas para alguns seguimentos porque a economia inteira está em crise. Acho que agora a parte urgente é como trabalhar com as grandes empresas para não converter um problema de liquidez num problema de solvência que resulta em empresas quebrando.

O sr. tem alguma projeção para o mercado neste ano?
Não sabemos quanto tempo vai demorar a queda nas vendas, quando o mercado vai voltar e nem em que ritmo. Ninguém tem uma previsão. Como estimativa eu acho que vai ser menor que em 2016, o pior dos últimos 13 anos, com vendas de apenas 2 milhões de veículos. Até que não se tenha uma solução permanente para o problema do coronavírus não saberemos como vai evoluir a economia. Então, é preciso resolver o problema de curto prazo de caixa, depois vamos ver como fica a situação para frente e como pode ser a retomada da produção.

A GM já negociou com os sindicatos um acordo de lay-off, com redução de salários. Esse é um caminho para ajudar na retomada da produção e manutenção de empregos?
O problema de caixa vai além de acordos que as empresas façam com os sindicatos. É um problema que a indústria não vai conseguir resolver sozinha. Todo o foco deve estar nisso. Estou confiante de que o governo entende que isso é chave para a preservação dos postos de trabalho e a capacidade da indústria se manter no futuro.

A GM suspendeu do investimento de R$ 10 bilhões para os próximos cinco anos. Como vai ser daqui para frente?
Quando a gente não sabe quantos carros serão vendidos em 2020, e em 2021 e temos uma crise de liquidez que pode levar empresas a quebrarem, falar de investimentos não faz sentido. Para resguardar o caixa, temos de parar todo o investimento nesse momento. Continuamos olhando o Brasil e a América do Sul como mercado chave no longo prazo. Nossa intenção é voltar a fazer esse investimento, mas quanto, como e em que momento não podemos responder hoje.

Tinha dinheiro da matriz nesse plano?
A estrutura de financiamento que a indústria tinha antes da crise não é mais relevante. Daqui para frente o que eu diria é que vai ser bem difícil qualquer apoio das matrizes.

E os sete lançamentos que a GM tinha previsto para este ano?
O que está previsto para este ano está tudo pronto, os investimentos já foram feitos.

Que indústria teremos quando isso passar?
O nível de dívida que as empresas vão ter justamente por essa tremenda perda de vendas vai fazer com que todas as decisões de investimento e toda a disciplina financeira mudem porque o foco principal será reduzir essas dívidas. Vamos ver um comportamento muito diferente de precificação – os preços vão subir, pois vão acompanhar o câmbio. As decisões de investimento serão diferentes porque, quando se tem muita dívida no balanço a capacidade de investir é menor. As discussões de marco regulatórios (metas para redução de poluentes, de consumo, de níveis de segurança) terão de ser adiadas porque não haverá dinheiro para fazer os investimentos necessários para atender essas metas.

O tamanho do setor pode diminuir?
Vai depender de como será a estabilidade do retorno e quanto tempo vai demorar para voltarmos a níveis prévios de crescimento. Isso vai determinar o tamanho da indústria. Se voltar rápido, vai manter mais ou menos o que é hoje. Se demorar anos, vai ter redução de nível de empregos e de quantidade de empresas em cada país.

Como ficam os projetos de carros elétricos e autônomos?
Como observador da indústria global posso dizer que nossa indústria vende perto de 100 milhões de veículos por ano e gira receita de quase US$ 1,5 trilhão, US$ 2 trilhões. Neste ano deve haver uma queda de receita de 30% a 40%. Então, milhões em receita vão desaparecer. Isso vai ter impacto em tudo que se planejou para o futuro, sem nenhuma dúvida. Como exatamente vai ser ninguém pode dizer nesse momento.

Fonte: Estadão, por Cleide Silva, 09.04.2020

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