Entrevista com Haroldo Torres, economista e gestor de projetos do Programa de Educação Continuada em Economia e Gestão de Empresas (Pecege)
Após o presidente Jair Bolsonaro frustrar as expectativas de um acordo para socorrer o setor de etanol, com aumento de impostos, uma linha de financiamento garantida por estoques torna-se uma pauta ainda mais urgente para o mercado sucronergético.
“Nossa velocidade de reação, com políticas de medidas emergenciais, é lenta. Parece que estamos esperando a crise acabar para que saia essa linha [de financiamento]”, critica o economista Haroldo Torres, do Pecege, o Programa de Educação Continuada em Economia e Gestão de Empresas da USP, nesta entrevista à epbr.
Levantamento do Pecege (.pdf) identificou que há cerca de 17 bilhões de litros de capacidade de armazenamento no Brasil, com quase um terço livre atualmente.
O que falta para uma parcela relevante das usinas é a flexibilidade para mudar o mix de produção e amenizar os impactos com açúcar, elevando o risco de ficarem com o fluxo de caixa debilitado por um longo período. Além do fato que a distribuição dessa capacidade é desigual.
erca de 30% do total de usinas no país estão nessa situação mais crítica, já que não podem optar pela produção de açúcar para compensar as perdas com o etanol.
“Quem vai minguar são estes 30%, 109 destilarias estão na UTI neste momento. Por isso, é muito necessário que saia a linha de financiamento para estocagem”, diz o economista.
O setor pleiteia junto ao governo a formação de uma linha de crédito, por meio de bancos públicos e privados, garantidas pelo estoque do produto, para redução dos riscos e custos desses empréstimos – modalidade chamada de warrantagem. A Unica, que representa produtores principalmente do Centro-Sul, estima uma demanda na ordem de R$ 9 bilhões.
A isenção temporária de pagamento de PIS/Pasep e Cofins sobre o biocombustível e o aumento de impostos (Cide e taxa de importação) sobre a gasolina completam a lista de pedidos. Na semana passada, contudo, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não seria justo aumentar impostos sobre a gasolina para ajudar o setor de etanol.
“Nem tudo deve ser jogado na conta do governo federal. É importante dizer que os estados, através do ICMS, têm uma parcela expressiva da tributação de combustíveis, influenciando na competitividade do etanol”, afirma Torres.
Produção de açúcar é privilegiada por disparada do dólar
Sem nada definido nas negociações com o governo, usinas com maior capacidade de estocagem e as que podem apostar na produção de açúcar são as mais bem preparadas para atravessar a crise.
“Estão desenhando-se dois grupos no setor: empresas que têm uma capacidade expressiva de estocagem e estão aproveitando como oportunidade de mercado para alugar esses tanques, e outras que não têm capacidade de estocagem, e que estão vendendo o etanol abaixo do custo de produção, para fazer algum volume de caixa”, resume o economista.
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), na primeira estimativa para a safra 2020/2021, prevê uma produção de 35,3 milhões de toneladas, 18,5% maior em relação à safra passada.
“A estratégia agora é fazer uma safra maxisugar (…) O câmbio está garantindo em torno de 100 a 300 reais por tonelada de açúcar a mais de remuneração, que na safra passada”, explica Torres.
Qual seria o papel do Renovabio se o programa estivesse plenamente em vigor?
A comercialização de créditos de carbono (os CBIOs) baseados na produção de biocombustíveis está autorizada desde 27 de março – e poderia ser mais uma fonte de socorro ao setor neste momento de crise. Até o momento, contudo, mais de 470 mil CBIOs foram registrados na B3, mas nenhuma negociação concluída.
“Temos problemas a serem corrigidos. Falta clareza sobre ambiente de comercialização, certeza de precificação e transparência nas publicações de informação, como os pré-CBIOs, por exemplo”, afirma Torres.
Pré-CBIOs são registrados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que controla os volumes de produção, importação, venda a certificação dos biocombustíveis (eficiência energética). É a quantidade de CBIOs que poderão ser emitidos por cada empresa na B3.
Para o economista, são necessários mecanismos de regulação para evitar casos de especulação. “Não pode ser um mercado totalmente livre, porque existem agentes compulsórios de tamanhos distintos para adquirir os CBios, e que podem manipular este mercado”.
Como não era possível prever essa situação sem precedentes que o mundo atravessa, com o desequilíbrio do mercado de petróleo agravado por uma pandemia, foi perdida a oportunidade de o Renovabio mostrar sua relevância em meio à crise.
“O programa seria esse colchão, que estamos jogando nas costas da Cide. Uma espécie de amortecedor do impacto do preço do petróleo, e não precisaríamos estar discutindo a questão tributária”.
Na íntegra, a entrevista com Haroldo Torres, economista e gestor de projetos do Programa de Educação Continuada em Economia e Gestão de Empresas (Pecege)
O governo sinalizou que não haverá elevação da Cide, como fica a situação do setor?
Hoje no Brasil, segundo dados do Ministério da Agricultura, o setor sucroenergético tem 367 usinas de etanol de cana. Dessas, 238 são mistas, que conseguem produzir açúcar e etanol, e 109 são destilarias que produzem apenas etanol.
Então, quando olhamos para a discussão da Cide, é importante dizer que este problema vai ser extremadamente penoso para este grupo de 109 usinas, que representam cerca de 30% do setor. Quem vai minguar são estes 30%. Mas nem tudo deve ser jogado na conta do governo federal.
É importante dizer que os Estados, através do ICMS, têm um parcela substancial expressiva na tributação de combustíveis, influenciando na competitividade do etanol. O Mato Grosso, por exemplo, prorrogou o prazo para recolhimento do ICMS do etanol. Alguns estados estão adotando políticas para tentar ajudar esse fluxo de caixa, dando um fôlego para usinas nesse momento A salvação não esta na Cide, existem outras medidas.
O que o setor pode fazer?
A felicidade de alguns é a tristeza de outros. Com o dólar a R$ 5,84, o câmbio está sendo a nossa salvação neste momento, a despeito da Cide. Majoritariamente, o nosso açúcar é distribuído para o mercado internacional , para exportação, e o dólar é uma variável que nos traz competitividade. Então se por um lado ele traz impacto negativo, como já sabemos, por outro, para o agronegócio ele é positivo.
Temos uma balança no setor hoje. A maioria das empresas, para suavizar as perdas que estão tendo com o etanol, está maximizando a produção de açúcar. O cenário do setor sucroenergético seria mais deletério se não tivéssemos o açúcar neste momento. O açúcar esta sendo o fiel da balança.
As 109 destilarias estão na UTI neste momento. Por isso, é muito necessário que saia a linha de financiamento para estocagem. Ou elas estocam o etanol para comercializá-lo mais a frente, o que significa capital de giro parado. E lembremos que o setor é extremamente demandante de capital de giro para honrar compromissos de curto prazo.
A segunda estratégia, ao invés de estocar etanol, estocar a cana, isto é, deixar a cana no campo, adiando a colheita. É o pior cenário, o mais drástico, mas está sendo cogitado por algumas empresas. Se olharmos para os EUA, na indústria de milho, 57 usinas já fizeram isso. Porém, para ele é mais fácil pois é um produto que não é perecível. Para evitar este cenário, sou um fiel defensor dessa linha de financiamento para estocagem, que também evita uma distorção tributária.
Qual a capacidade de estocagem das usinas neste momento?
O setor não tinha ideia da sua capacidade de estocagem. Mesmo quando olhamos para os números macros do setor temos uma folga considerável de estocagem, uma herança que vem do Proálcool. São 17,2 bilhões de litros para estocar.
Mas, apesar desse contexto, estão desenhando- se dois grupos no setor. Empresas que têm uma capacidade expressiva de estocagem e estão aproveitando como oportunidade de mercado para alugar esses tanques, e outras que não tem capacidade de estocagem, e que estão vendendo o etanol abaixo do custo de produção, para fazer algum volume de caixa.
Existe uma demora para liberação desta linha de financiamento. Ela chegará a tempo?
Nossa velocidade de reação com políticas de medidas emergenciais é lenta. Me parece que estamos esperando a crise acabar para que saia essa linha. E também tenho um receio. Quando falamos de financiamento ou empréstimo bancário, corremos um sério risco de fazermos um processo de seleção adversa, se, ao invés do crédito chegar em quem mais está precisando, concedermos crédito para a usina que está em melhor condição financeira e que, eventualmente, possua tanque disponível, ou tenha rating ou características de solidez financeira, sendo capaz de passar numa análise de crédito de bancos ou do próprio BNDES.
Eu espero que quando essa linha seja disponibilizada, ela saia com vistas à atender o setor sem criar essa seleção. Isso já vem sendo discutido pelo setor. Caso contrário, quem vai se beneficiar são os maiores players, que vão se aproveitar de uma linha de crédito eventualmente mais barata, em detrimento de outras. Isso ocasionará uma seleção natural, em que as pequenas usinas serão eliminadas do mercado no médio e longo prazo, deixando algumas destilarias, regionalmente espalhadas, sangrarem.
Neste caso haveria um risco de concentração no setor?
Acredito que não se daria uma concentração. Teríamos muito mais um processo de desaparecimento de agentes do mercado. Isto porque mesmo os grandes não tenderiam a comprar essas usinas. Elas não seriam incorporadas industrialmente. Talvez a cana seja incorporada, uma vez que as usinas operam com 20% de ociosidade. Então, haveria uma concentração dos canaviais, mas não dos ativos industriais.
Voltando a questão do açúcar, há um risco de superoferta no mercado?
A estratégia agora é fazer uma safra “maxisugar”, aquelas 238 usinas mistas vão tentar produzir o máximo possível de açúcar. Porém, vamos maximizar esta produção justamente quando o consumo do produto no mundo vem arrefecendo, e deve cair de 1 a 5 milhões de toneladas, pelo efeito da pandemia e a consequente redução do consumo de alimentos e bebidas fora de casa, como refrigerantes e lácteos, responsáveis por cerca de 70% do consumo industrial de açúcar, e que não migrou para o consumo doméstico.
Por outro lado, temos um ponto positivo. A Índia e Tailândia, dois importante players no mercado de açúcar, estão tendo uma safra penosa em função de problemas climáticos. Isso vai garantir que esta produção adicional de açúcar brasileiro, algo em torno de 36 milhões de toneladas para este ano, não contribua para uma pressão negativa no preço do açúcar na bolsa de NY, que já vem acontecendo. Então, o que temos é o risco de conviver até a próxima safra com os preços em dólar na casa que estamos vendo hoje.
Mas, mesmo com os preços caindo no mercado internacional, observando essa expectativa de recorde de safra de cana no Brasil, o câmbio está garantindo em torno de 100 a 300 reais por tonelada de açúcar a mais de remuneração que na safra passada.
Outro ponto é que, se olharmos para janeiro, ninguém imaginava que teríamos esse nível de produção de açúcar. Não tínhamos logística contratada, transporte contratado para fazer o escoamento desse açúcar adicional para o porto. No modal rodoviário competimos com o agronegócio que terá uma safra recorde de grãos. Sendo assim, corremos o sério risco de atrasos nos embarques dos portos em razão dessa competição logística, ou até mesmo pelo atraso na contratação.
Este é o maior risco do açúcar hoje. Outra vez, quem tem capital de giro vai ser beneficiado. Há também, em menor probabilidade, o risco de paralisação dos portos em consequência do coronavírus.
E o Renovabio, por meio dos CBIOs, poderia ser uma ferramenta de ajuda ao setor neste momento, ou também só privilegiaria os grandes grupos?
Pelo contrário. Aqui temos um programa que é universal, não haveria esse privilégio. Infelizmente, o Renovabio perdeu a chance de ouro que ele tinha, se estivesse em funcionamento nesse momento. Perdeu sua oportunidade para provar o seu papel, com o atual preço do petróleo. O programa seria esse colchão, que estamos jogando nas costas da Cide. Uma espécie de amortecedor do impacto do preço do petróleo, e não precisaríamos estar discutindo a questão tributária.
Se o petróleo estiver 80, 70 dólares o barril, o valor do CBIO seria zero. Porque o próprio mercado trará competitividade ao etanol de forma que a as usinas produzam e possamos cumprir nossas metas. Quanto maior for o nível do preço do petróleo, menor tende a ser o preço do CBIO.
E isso vale ao contrário, como agora, com o petróleo a 20 dólares, deveríamos ter o maior preço de CBio, de modo que, no mínimo, ele pudesse zerar a margem da usina e trazer incremento adicional de margem para estimular a produção de etanol em detrimento do açúcar, ao nível mínimo para o Brasil cumprir suas metas de descarbonização.
Nossa letargia no setor sucroenergético tem atrapalhado. O Renovabio iria garantir a previsibilidade na oferta de combustíveis, suavizar as oscilações de mercado, para que o etanol ainda pudesse ser competitivo e para que pudéssemos honrar as nossas metas de descarbonização do Acordo de Paris. Infelizmente, não sei se veremos esse possibilidade se repetir.
Já temos CBios registrados na B3, mas até agora não houve nenhuma negociação, e ainda há muitas dúvidas em relação ao preço e tributação. O que está impedindo o funcionamento do Renovabio?
O programa tem uma curva de aprendizado ainda muito grande. Temos problemas a serem corrigidos. Falta clareza sobre ambiente de comercialização, certeza de precificação e transparência nas publicações de informação, como os pré-CBIOs, por exemplo.
Não pode ser um mercado totalmente livre, porque existem agentes compulsórios de tamanhos distintos para adquirir os CBIOs, e que podem manipular este mercado. Há outro problema relacionada à oferta, em que a oferta de CBIOs não tem crescido na mesma velocidade que a gente esperava, isto é, não acompanha o volume das vendas de combustível no Brasil. A própria meta deve ter um mecanismo mais dinâmico, que observe o volume real do consumo de combustível e a capacidade produtiva das usinas.
Se olharmos para Califórnia, vamos ver que é um programa até hoje em desenvolvimento. Eles criaram um market cap, um mercado onde mesmo que não houvesse oferta daquele ativo, para garantir a compra pelas distribuidoras, haveria uma espécie de estoque desses ativos, para quando não houvesse oferta. Foi criado um preço teto, temos que olhar para o que aconteceu lá fora. Temos que aprender muito o modelo californiano. Estamos muito aquém do que deveríamos estar.
A própria B3 não diz se vai haver mecanismo de squeeze. Se uma grande distribuidora quiser comprar 100% dos ativos, ela pode, e a pequena distribuidora não poderá comprar, o que forçaria um aumento do CBIOs dada a redução da oferta no mercado. E a própria distribuidora detentora dos ativos poderia vender no mercado. Então é necessário o mecanismo de squeeze para limitar a quantidade cada agente possa adquirir, para fins de redução de especulação de movimentos arbitrários de mercado. Os CBIOs têm uma longa caminha a percorrer.
E a tributação atrapalha?
Em relação à tributação. Quando olhamos os custos do Renovabio, de certificação, contrato das consultorias, de validação das notas, custos da escrituração, os custos da B3 e ainda uma alíquota de talvez 34%, os CBIOs perdem atratividade. Esta tributação atual afugenta investidores externos.
Neste momento, o ministério da Economia não pode ter uma agenda que priorize um setor específico, mas um objetivo mais geral que atenda a necessidade da sociedade como um todo, e isso o Renovabio faz, diferente de uma elevação da Cide, por exemplo. Para concluir, as usinas que conseguiram fazer um caixa na safra passada terão mais chance de atravessar essa crise.