Após anos de exercício da atividade regulatória na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), uma das perguntas que seguramente afirmo ser a mais recorrente entre curiosos sobre o segmento de combustíveis é a questão dos #preços nos postos e a percepção, pela população, de que postos de sua cidade poderiam estar atuando em #cartel.
Duas perguntas surgem, normalmente, nesse momento:
👉 Primeiro: qual a atuação da ANP em relação a eventuais práticas de cartel pelos postos?
👉 Segundo: qual a metodologia utilizada pelo órgão regulador para apurar indícios dessa prática?
Antes de responder a essas 2 perguntas, é relevante determinar o conceito de cartel.
Um cartel pode ser definido como um acordo horizontal, formal ou não, entre concorrentes que atuam no mesmo mercado relevante geográfico e material, que tenham por objetivo uniformizar as variáveis econômicas inerentes às suas atividades, como preços, quantidades, condições de pagamento etc., de maneira a regular ou neutralizar a concorrência.
Como se vê, a consequência maior do cartel é regular ou neutralizar a concorrência. Assim, o primeiro passo é compreender o papel da ANP na defesa da concorrência!
Vamos lá …
1️⃣ PAPEL DA ANP NA DEFESA DA CONCORRÊNCIA
No Brasil, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) é o conjunto de órgãos governamentais responsável pela promoção de uma economia competitiva no país, por meio da prevenção e da repressão de ações que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência.
O SBDC é formado, hoje, por 2 órgãos: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça, e a Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência (SEPRAC), do Ministério da Economia. A atuação desses 2 órgãos, titulares a competência para prevenção e repressão às infrações à ordem econômica, é definida pela Lei da Concorrência.
Cabem a eles a atuação repressiva, portanto, aos cartéis, incluindo aí os cartéis entre postos de combustíveis.
Então, afinal, qual seria o papel da ANP?
Nos gráficos a seguir tento resumir didaticamente essa relação da ANP com o SBDC, em especial com o CADE.
Como se pode ver, a ANP tem, de acordo com a Lei do Petróleo, em seu art. 10, competência para atuar em casos de infração à ordem econômica (onde se encaixam os cartéis!) por meio do suporte ao CADE e do através de 4 passos:
- [1] ➡ a ANP deve tomar conhecimento, ou via denúncia ou manifestação externa, ou via fiscalização.
- [2] ➡ a ANP deve identificar os indícios da prática de cartel – muita atenção, pois o que a Agência verifica são os indícios, e não a prova do cartel!
- [3] ➡ a ANP deve comunicar imediatamente ao CADE, sendo o processo de execução desse relacionamento regulado pelo Regimento Interno da ANP, em seu art. 123.
- [4] ➡ … e o CADE toma as providências cabíveis.
Está clara, portanto, a resposta à primeira pergunta deste artigo. A ANP, antes de enviar ao CADE um eventual fato sobre cartel entre postos, do qual tomou conhecimento, deve avaliar a existência de indícios dessa prática!
Mas como são apurados esses indícios do exercício de cartel?
2️⃣ OS MITOS E VERDADES SOBRE OS INDÍCIOS DE PRÁTICA DE CARTEL
Duas crenças de “senso comum” costumam ser rotineiras sobre os preços nos postos e a impressão de que “algo possa estar errado”.
A primeira crença é: “os preços dos combustíveis nos postos do meu bairro ou cidade estão praticamente iguais”. Isso seria evidência da existência de cartel?
A verificação de preços iguais ou semelhantes, por si só, não é suficiente para a caracterização de cartel. É necessário comprovar que os empresários combinaram os preços por meio de reuniões, aplicativos de redes sociais, etc.
Além disso, em mercados de pequeno porte, a similaridade dos preços praticados pelos revendedores de combustíveis pode ser uma consequência das condições específicas do mercado, como produto homogêneo e elevada transparência de preços. Este comportamento, quando não há conluio explícito, não pode ser caracterizado como uma prática anticompetitiva. A ANP acompanha periodicamente os preços dos combustíveis nas diferentes localidades de modo a verificar, do ponto de vista econômico, a existência de possíveis indícios de formação de cartel.
A segunda crença é: “na minha cidade os preços dos combustíveis são mais altos do que os preços praticados na cidade vizinha”. Isso significa que tem cartel na minha cidade?
Os preços dos combustíveis ao consumidor são definidos em regime de livre mercado, considerando fatores como: custos de aquisição do produto, margem líquida de remuneração, despesas operacionais, impostos incidentes e padrão de concorrência de cada mercado.
O padrão de concorrência varia de acordo com elementos como: renda da população, número de revendedores e de distribuidores que atuam no mercado e volume comercializado por tipo de combustível.
Assim, diversos fatores podem influenciar o preço dos combustíveis, de modo que a comparação dos preços entre diferentes cidades somente não é suficiente para caracterizar cartel, sendo necessária uma análise criteriosa, caso a caso, levando em conta outros elementos.
Devemos lembrar que vigora no Brasil, desde 2002, o regime de liberdade de preços em toda a cadeia de combustíveis.
Não há qualquer tipo de tabelamento, valores máximos e mínimos, participação do governo na formação de preços, nem necessidade de autorização prévia para reajustes de preços de combustíveis.
Para auxiliar o cidadão a conhecer e comparar os preços dos produtos comercializados pelos revendedores, a ANP monitora o mercado por meio de uma pesquisa semanal, que abrange gasolina comum, etanol hidratado, óleo diesel não aditivado, gás natural veicular (GNV) e gás liquefeito de petróleo (GLP).
⚠ Afinal:
qual seria então o caminho para a ANP auxiliar os órgãos do SBDC na apuração de cartéis entre postos?
A resposta é: identificando corretamente os indícios de sua presença, para encaminhamento ao CADE.
Vejamos como isso é feito.
3️⃣ METODOLOGIA DA ANP PARA DETECÇÃO DE INDÍCIOS DE CARTEL
A ANP, por meio da então Superintendência de Defesa da Concorrência (SDC), desenvolveu uma metodologia própria para análise dos preços praticados no segmento de revenda de combustíveis, a fim de identificar a existência de indícios de conluio entre os agentes para combinar preços em um dado mercado relevante.
Essa metodologia não contempla acordos de outras naturezas considerados ilícitos no âmbito da legislação antitruste[19]. A experiência, no entanto, mostra que o mais típico no mercado de combustíveis é a coordenação entre concorrentes para a fixação de preços.
A estratégia consiste, basicamente, em três passos:
Vejamos em detalhes.
👉 PASSO 1: Definição do Mercado Relevante
O mercado relevante é definido como o menor grupo de produtos e a menor área geográfica necessários para que um suposto monopolista esteja em condições de impor um ‘pequeno porém significativo e não transitório’ aumento de preços. Assim, representa o locus composto por produtos e área geográfica no qual o exercício de poder de mercado por parte de uma empresa torna-se possível.
As dimensões produto e geográfica do mercado relevante podem ser definidas da seguinte maneira:
- Dimensão do produto: compreende todos os produtos/serviços considerados substituíveis entre si pelo consumidor, devido às suas características, preço e utilização. Inclui-se aqui também a hipótese de os produtos/serviços serem substituíveis pela ótica da oferta, em que são levados em consideração a possibilidade de ofertantes de um determinado produto/serviço, a um custo razoável, passar a ofertar outro produto/serviço ➡ nesta dimensão, o mercado relevante de distribuição e de revenda de combustíveis líquidos deve ser definido separadamente para cada combustível gasolina, óleo diesel, etanol hidratado combustível, gás liquefeito de petróleo (GLP) e gás natural veicular (GNV). Esta definição justifica-se pela ainda baixa substituição entre os combustíveis, tanto pelo lado da oferta como pelo lado da demanda.
- Dimensão geográfica: compreende a área em que as empresas ofertam e procuram produtos/serviços em condições de concorrência suficientemente homogêneas em termos de preços, preferências dos consumidores, características dos produtos/serviços ➡ nesta dimensão, para o segmento de revenda de combustíveis líquidos, a delimitação geográfica corresponde ao município.
👉 PASSO 2: Caracterização da Estrutura de Mercado
No que se refere ao cálculo da participação do agente econômico no mercado, que é informação essencial para determinação da posse ou não de poder de mercado pelo agente, a ANP utiliza, para o mercado de distribuição de combustíveis, o market share empresa, ao passo que para o mercado de revenda é utilizado o número de postos por município.
Para garantia da representatividade da análise de identificação dos indícios, consideram-se os municípios nos quais existam 15 ou mais postos.
Essas informações são importantes para caracterização da estrutura do mercado e, consequentemente, sua dinâmica concorrencial.
Mercados de revenda de combustível com poucos ofertantes, por exemplo, tendem a apresentar maior grau de convergência de preços, já que alterações nos preços praticados por determinado posto revendedor tendem a ser mais rapidamente percebidas pelos postos rivais, que tenderão a acompanhá-lo.
Logo, nesses mercados, um eventual alinhamento de preços pode se dar mais em função das condições estruturais presentes e indicar acordos tácitos ou mesmo concorrência entre os agentes, e não, necessariamente, indícios de cartel.
👉 PASSO 3: Análise do comportamento da dispersão de preços e da margem do revendedor
Uma vez definido o mercado relevante, a metodologia desenvolvida pela Coordenadoria de Defesa da Concorrência da ANP para identificar, do ponto de vista estritamente econômico, indícios de cartéis no mercado de revenda de combustíveis baseia-se na análise simultânea do comportamento tanto da dispersão entre os preços praticados ao consumidor em um mercado relevante, por meio do coeficiente de variação dos preços de revenda (CV), quanto da evolução da margem média bruta.
Esses conceitos são assim definidos:
Conceito [1] – Coeficiente de Variação dos Preços (CV): Medida de dispersão de preços, obtida dividindo-se o desvio padrão pela média de preços no mercado.
Essa medida é adequada para comparar um conjunto de valores com distribuições de probabilidade distintas. A razão para não utilizar o desvio-padrão, que é a medida mais comum de dispersão, é porque o desvio-padrão se refere a uma média específica, e como duas ou mais distribuições podem ter médias diferentes, a comparação entre os desvios-padrão de séries com distribuições distintas não é apropriada estatisticamente.
Na prática:
🔸 Se CVs < 0,010 por um período significativo de tempo, mais de 24 semanas, em mercados relevantes com mais de 15 postos revendedores, há indicativos de alinhamento de preços.
🔸 Se os CVs apresentam períodos com valores inferiores ou iguais a 0,010, intercalados com períodos nos quais esse índice assuma valores no intervalo de 0,010 a 0,020, a análise contempla, para o período como um todo, o cálculo do percentual de postos amostrados semanalmente que estão praticando preços muito próximos, considerando um intervalo de preços estipulado a partir da base de dados. Dessa forma, é possível identificar exatamente os períodos nos quais a similaridade de preços ao consumidor final é evidente.
Conceito [2] – Margem Bruta do Revendedor (MBR): Diferença entre os preços médios de revenda e os preços médios de distribuição.
O objetivo da MBR não é tecer considerações acerca dos valores médios da margem bruta ao longo de um período, mas sim identificar tanto aumentos significativos que não possam ser explicados por incrementos nos custos associados especificamente à atividade de revenda de combustíveis, quanto à manutenção da margem média em patamar elevado por um período de tempo considerável.
Ou seja…
… a metodologia da ANP sinaliza que há indícios de acordo entre os agentes econômicos, com o objetivo de fixar preços de tal forma a auferir margem de lucro acima dos níveis competitivos em um mercado relevante, quando são identificados, simultaneamente, pequena dispersão entre os preços e manutenção das margem média em níveis elevados por um período de tempo significativo.
⚠ Importante mencionar que o uso de métodos econômicos para detectar indícios de cartel em determinado mercado cumpre, apenas, esse papel.
📌 CONCLUSAO
Apesar de extremamente lesivas para a sociedade, as práticas de cartéis são de difícil comprovação do ponto de vista legal. Os eventuais indícios econômicos encontrados não são suficientes, muito menos necessários, para a condenação da prática por parte da autoridade antitruste do país, no caso o CADE, sendo necessária a confirmação desses indícios por meio de provas contundentes da realização do acordo (atas de reunião, escutas telefônicas, etc.). Da mesma forma, a consecução dessas provas diretas permite a condenação dos agentes sem a necessidade de produção de indícios econômicos.
Assim, a análise estritamente econômica indica, no máximo, a existência de alinhamento de preços combinado com margens em patamares elevados e convergência não explicável de reajustes.
A distinção entre comportamentos paralelos (não vedados em lei, apesar de resultarem em um nível de preços superior ao nível competitivo) e a prática de cartéis exige, para fins de condenação, elementos adicionais a uma análise estritamente econômica.
O próprio CADE já expôs, em diversos julgados, a opinião de que a mobilização de meios para realizar acordo visando à conduta uniforme dos concorrentes é condição necessária, mas não suficiente para a caracterização de infração à Lei da Concorrência.
❓❓❓❓
O que acontece, então, com uma empresa que integra um cartel ou comete outros atos prejudiciais à concorrência?
No âmbito administrativo, o CADE realiza a instrução e o julgamento dos processos de práticas anticompetitivas. A empresa e os administradores da empresa, direta ou indiretamente envolvidos com o ilícito, podem ser condenados a pagar multa, dentre outras sanções, além de responsabilização cível e criminal.
Complementar e adicionalmente a isso, a ANP poderá revogar a autorização para o exercício de atividade da empresa que praticar, no exercício de atividade relacionada ao abastecimento nacional de combustíveis, infração da ordem econômica reconhecida pelo CADE ou por decisão judicial.